O paradoxo do superdotado capacitista

Apareceu nessa comunidade AHSD (altas habilidades/superdotação) já em dois lugares diferentes a frase "a gente não consegue lidar com a lentidão das pessoas". Visto que AHSD não é transtorno, e sim uma condição, por não serem, em tese, pessoas com deficiência, no sentido jurídico do termo PCD, vejo que o AHSD não necessariamente vai se interessar pela problemática social dos transtornos mentais, pergunto: não seria capacitismo do superdotado não tolerar o ritmo mais lento das outras pessoas? Não seria falta de habilidade social do superdotado? Não seria falta de liderança o superdotado preferir resolver tudo sozinho? Essa intolerância à suposta lentidão da equipe não poderia levar ao underachievement do AHSD?


Por definição, o capacitismo tende a discriminar a neurodivergente e o deficiente, como pessoas não normais, ou incapazes. Na visão capacitista se espera apenas o mérito "normal" das pessoas, desconsiderando o mérito individual, atípico, não se consideram as potencialidades únicas do neurodivergente, o capacitista observa mais o desempenho "desconforme" do que o desempenho superior da pessoa em outras áreas.

Quando ouço, ou leio, a frase "as pessoas são lentas para mim", percebo um neurodivergente intolerante ao neurotípico, ou ainda pior, um neurodivergente intolerante ao neurodivergente. Eu, como já contei aqui, sou da comunidade dos autistas, e para falar a verdade a gente acha que os neurotípicos são a escumalha do universo, a maioria dos problemas da humanidade são responsabilidade dos neurotípicos, em tom de chat, em tom de piada, podemos até falar "neurotípico é tudo tapado", até porque os autistas sofrem muito nas mãos deles. Mas no grupo dos superdotados não podemos levar muito a sério a mensagem de que "as pessoas são lentas para nós" porque isso pode levar a um comportamento segregador e de superioridade, dentre outros problemas. O AHSD precisa ser acolhido e precisa aprender a acolher. Inclusão é uma via de mão dupla. Deixo essa reflexão.

Ricardo Ramalho

Postado originalmente na comunidade AHSD (Da Vinci)

Três mitos e a romantização da condição AHSD

Tenho estudado os transtornos associados às Altas Habilidades e Superdotação e vou relatar abaixo três mitos e o problema da romantização da condição.

1) Hiperfoco é um foco excelente.

2) Altas habilidades é hábil.

3) Superdotação é uma capacidade extraordinária.

A autoestima dos superdotados não costuma ser grande coisa, por isso não quero aqui abalar ninguém, só pontuar algumas idéias equivocadas do senso comum. AHSD trás sérios problemas, se sua vida está em ordem talvez você não seja AHSD. 

O hiperfoco é um bom foco? Mais ou menos. O hiperfoco tem um foco limitado em um aspecto do conhecimento, é um hiperinteresse, hiperfoco não quer dizer que a pessoa tem uma grande capacidade de foco geral. Exemplo: uma vez criei abelhas, foi um hiperfoco, cheguei a envazar mel e vender. Adoro mel e abelhas. Mas eu não tinha um foco global na atividade, não tinha planejamento nenhum, não tinha estratégia de negócio, nem aprimorei os processos de envasamento, eu só gostava de lidar com as abelhas e comer mel. Vender mel era um efeito colateral. Resultado: atividade encerrada. Quantas atividades você teve hiperfoco e encerrou? Seu foco era fantástico mesmo?

Altas habilidades é hábil? Da mesma forma que o hiperfoco, altas habilidades tem habilidades específicas, por exemplo, habilidade com a linguagem, com a criatividade, com a interpretação, com a análise, com atividades manuais, mas não quer dizer que a pessoa é habilidosa em tudo o que ela faz. Ela pode ser muito pouco habilidosa nos relacionamentos, ao ponto de causar prejuízos na carreira, pode ser pouco habilidosa em gestão financeira, ou planejamento, pouco habilidosa no trato interpessoal, na diplomacia, na negociação, nos cuidados com o corpo, na organização e até no trabalho.

O Superdotado não é uma pessoa extraordinária, como se fosse um super-herói da Marvel. Inteligência não é sinônimo de êxito, não é sinônimo de altruísta, ou de justo, correto e educado, a capacidade pode ser extraordinária em um aspecto e fraca em outros. Exemplo, o fato de uma criança tocar piano desde muito jovem não quer dizer que ela vá ter um futuro fantástico pela frente. A superdotação pode trazer alta performance em alguns aspectos, em outros não.

Em resumo, a romantização da condição oculta dificuldades sérias, gera uma ansiedade onde agora todas as pessoas querem ser AHSD, a romantização banaliza o sofrimento e as virtudes da condição. Ninguém deveria querer ser AHSD, as pessoas tem que tratar suas dificuldades, buscar autoconhecimento e observarem suas fragilidades com objetividade. Potencialidades e motivação são orientações importantes da comunidade, não quer dizer que devemos cultivar ilusões ou noções do senso comum. A superação, pelo menos parcial, das limitações do AHSD é importante levar a sério. Existe uma diferença entre morar no Tatuapé e morar em Nova Tatuapé, o adjetivo Nova não quer dizer que o lugar é melhor, em geral é bem pior. Da mesma forma os adjetivos Altas e Super precisam ser entendidos com cautela.

Um abraço, Ricardo Ramalho 

PS: artigo postado na comunidade AHSD (Da Vinci)

Será que o Jean Alessandro é autista? E você?

O Jean é uma espécie de Carl Sagan da Superdotação, ou seja, um cientista que ganhou notoriedade por divulgar o conhecimento e que, apesar da relevância da divulgação, poderá ser questionado pelas simplificações de alguns vídeos.

Não pretendo fazer posts sobre a condição dos outros, mas como ele é uma celebridade, é uma referência sobre o tema, e fala bastante sobre si mesmo, acho que cabe uma reflexão sobre um vídeo que ele publicou.

Nesse vídeo do Instagram (link abaixo) o Jean diz que recebeu vários diagnósticos errados, incluindo um "quase diagnóstico de autismo leve, por alguns profissionais". Ou seja, mais de um profissional sinalizou autismo no Jean. O autismo é um espectro, o fato da pessoa estar numa escala baixa de autismo não exclui totalmente a presença do espectro autista. Contextos favoráveis de vida podem amenizar os sintomas de autismo. (E contextos desfavoráveis podem agravar os sintomas). A meu ver, é preciso cuidado com a simplificação do vídeo sugerindo que tudo se resume ao AHSD.

Nesse vídeo ele reconhece traços de TDAH, porque o AHSD tem características semelhantes ao TDAH. No elenco de diagnósticos errados ele cita "depressão". A depressão é uma comorbidade de muitos diagnósticos, como TEA, TDAH e AHSD, mas ele citou a depressão como "diagnóstico errado ". Convenhamos, não tem como refutar um quadro de depressão, se ele está presente. A descoberta da causa da depressão não exclui o diagnóstico de depressão.

O ser humano tem muitas nuances, a categorização de diagnósticos serve para orientar tratamentos, não adianta criar fronteiras muito rígidas entre os diagnósticos psiquiátricos. Os tratamentos tem muito a ver com as comorbidades específicas. Tratamento não é só falar com psicólogo e tomar medicação, tratamento também é trabalhar dificuldades, trabalhar habilidades, exercitar pontos de deficiência, desenvolver o ser humano, sociabilização, pertencimento. Então diferentes condições devem ser observadas.

O que o TDAH pode ensinar ao superdotado? Ensina que pode haver disfunção executiva, ensina que a medicação de TDAH pode ser útil ao AHSD (a ritalina), indica necessidade de suporte em algumas áreas.

O que o autismo pode ensinar ao superdotado? Ensina que a rigidez cognitiva pode atingir níveis muito altos, o hiperfoco pode ser muito limitante, a dificuldade de comunicação e sociabilização pode ser muito alta, o prejuízo à qualidade de vida pode ser muito alto e que a necessidade de suporte (incluindo parcerias e colaboradores) é obrigatória. Ensina que a crise de raiva pode ser um meltdown autístico, o burnout pode ser estresse sensorial e emocional, e que a máscara pode ser bem pesada.

Enfim. Nem tudo se explica pela superdotação. Aprendemos aqui que a superdotação não é transtorno, então havendo transtornos podemos supor que a pessoa tem algo além da superdotação.

Um abraço, bom final de ano a todos,
Ricardo Ramalho

https://www.instagram.com/reel/Cz_nuiURmyi/?igsh=NjlmOWp3d243Nnps

post publicado na comunidade de Altas Habilidades e Superdotação do Jean Alessandro.

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